Maria Gabriela de Sá *
No tempo em que nasci, mal as crianças do sexo feminino saíam do útero da mãe tinham, à partida, a aguardá-las, a maioria delas, um nome composto por duas palavras cuja primeira era invariavelmente “ Maria”. Maria Antónia, Maria Armanda, Maria Adelina, Berta, Clara, Dolores…e por aí adiante.
Desde que o mundo é mundo, precisamos todos de um nome por que possamos ser chamados e a quem imputar direitos e deveres diversos.
No livro das nomenclaturas permitidas em Portugal, ontem como hoje, há mil e um nomes possíveis para ninguém ficar inominado, imune a responsabilidades e suas contrapartidas. Muitos nomes, mesmo. A começar por qualquer uma das vinte e três letras do abecedário – agora vinte e seis, embora, as últimas acrescentadas não tenham grande utilidade. Tanto para meninos como para meninas.
Nem todos nomes são de bom gosto. Mas essas questões os pais serão com certeza capazes de as matar logo à nascença a golpes de bom senso. Nenhuma pessoa do sexo feminino, feia que seja, gostaria, logo na infância, de ser interpelada na rua pelo nome se este for Capitolina ou Gumercinda. Capitolina e Gumercinda, dois bons exemplos na onomástica nacional que os pais não deviam seguir. Sob pena de, mais dia, menos dia, serem odiados pelas filhas e filhos nas mesmas circunstâncias, quando uns e outros compreenderem a dimensão do estrago nas suas vidas só por causa de um nome.
Não sei de onde surgiu a tendência, moda, sei lá, da atribuição de nomes às raparigas compostos por duas palavras como aquela de que estou falar. Não faço ideia se, a meio do século XX, o hábito de chamar Maria Qualquer Coisa às miúdas era uma cópia vaidosa da graça das nossas rainhas Marias, ou se não passava de uma tentativa de apelar à sorte para as filhas alcançarem um estatuto semelhante ao das monarcas e terem os mesmos privilégios de riqueza. Talvez não fosse nem uma coisa nem outra. Até por a memória das duas mulheres ter chegado ao comum dos mortais sem as suas múltiplas designações onomásticas. Raras são as pessoas conhecedoras dos nomes próprios que as duas tinham atrás (ou à frente) do Maria como se fosse um séquito de súbditos. Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana de Bragança é lembrada simplesmente como Dona Maria I, sem mais, só para exemplificar com uma rainha e economizar ao mesmo tempo fôlego e saliva. O que toda a gente saberá é que se trata de “A Rainha Louca”. A desgraça e os podres de alguém são sempre a melhor forma de a posteridade não se esquecer de nós.
Fazendo eu parte de um sem número de mulheres a quem calhou ter dois nomes próprios sendo um deles Maria, já demasiadas vezes me interroguei se Nossa Senhora de Fátima, com o culto consolidado junto do povo no ano do meu nascimento, teve ou não alguma influência no caso. Mas, bem vistas as coisas, não acredito. Afinal, os meus progenitores não eram devotos dos santos, dos anjos ou de Deus. Muito menos de padres e raramente iam à igreja. A não ser em baptizados e bodas, quando eram convidados. Ou em dias de funeral, já que nestas circunstâncias não é preciso convite. O meu pai, no dia do casamento, por uma questão de coerência consigo próprio nas questões religiosas, teve a honestidade de recusar a confissão e a hóstia na hora do sim. A justificação foi a de que não acreditava na transcendência e que estava ali a cuidar de um pró-forma destinado a calar as bocas do mundo, geralmente muito pouco meigas com mulheres como a sua Amélia, grávida de alguns meses. Curiosamente, talvez num golpe de rebelião da minha avó, a minha mãe não se chamava Maria. E se alguém, as beatas dali ou dacolá – sempre as houve em todo o lado – teve alguma vez a fanática esperança de que o sacerdote se recusasse a celebrar a cerimónia, engoliu a desilusão em silêncio, sem se atrever a questionar a decisão da autoridade sacerdotal. Depois de tudo, o meu pai saiu reforçado nas suas convicções:
– Gosto do seu ideal – dissera-lhe, então, o padre.
Seja como for, acabei por me transformar em Maria Qualquer Coisa, como muitas outras Marias minhas colegas de escola, cujos pais tiveram, apesar de tudo, sempre o cuidado de evitar nomes repetidos para não provocar confusões junto da mestra. E, assim, Maria é o meu primeiro nome, na verdade um apêndice que, à semelhança do apêndice do corpo humano, não serve para nada ou talvez só para se inflamar de vez em quando. É o que dizem os médicos. No fim de contas, o Maria nunca me serviu mesmo de muito, e penso que à maioria das Marias Qualquer Coisa terá sucedido algo semelhante. Ao longo da vida, raramente fui interpelada por Maria Gabriela fosse para o que fosse. Quando muito, à entrada na escola, em dias mais pomposos em que era necessário fazer a chamada, num exame, numa escritura antes da identificação por escrito, quando tanto eu como o meu nome completo erámos imprescindíveis. De resto, o Maria era como se não existisse, uma coisa inútil de que até os meus pais se esqueciam, questionando-se talvez por que mo haviam posto. Pode ser que fosse pela madrinha, mais uma Maria da geração anterior, mas não tenho a certeza de nada.
Já Maria Gabriela era eu sempre que fazia asneiras e precisava de ser repreendida com algum enfâse. Em boa verdade, toda a gente me fazia o mesmo. À excepção da repreensão, exclusiva do lar paterno: ignorava o Maria e chamava-me simplesmente Gabriela.
Às vezes havia um desvio à regra, e, quando alguém me interpelava por Maria Gabriela, era por uma questão de respeito, quase o reconhecimento de um certo estatuto, ou de um estilo próprio. Eu que nunca fui uma Maria-vai-com-as-outras… No lugar onde desenrolou a minha infância, havia, como em qualquer outro lado, algumas “Simplesmente Marias”. Contudo, quando alguém se referia a uma ou a outra, tinha invariavelmente de chamar à colação o sobrenome familiar. Ou a bendita alcunha: Maria Puxa, Maria Bulela, Maria Lima, Maria do Eugénio, sendo “Eugénio” o marido da Maria em questão. Ou, finalmente, fazia-se sucinta referência ao lugar onde a tal Maria morasse, como seja o caso de uma Maria da Fonte anónima que morasse à beira de um fontanário, ou da que empreendeu a revolta popular na Póvoa de Lanhoso no século XIX .
Por causa de tanta indistinção a que, à partida, se prestavam todas as Marias, talvez, numa espécie de premonição, dei comigo a embirrar demasiadas vezes com o nome que constava no meu acento de nascimento. Numa certa ocasião, “ameacei” até a minha mãe de arrancar de mim o Maria e acabar com mais uma na Terra. Ou, então, no mínimo, inverter a ordem da minha graça para Gabriela Maria, dar maior enfâse ao Gabriela e alguma importância ao Maria. Além de matar a tentação de alguém, numa ridícula economia de palavras, me tratar só pelo primeiro e último nome, como se o meu nome inteiro fosse do tamanho do das nossas rainhas. Já agora, a segunda chamava-se Maria da Glória Joana Carlota Leopoldina da Cruz Francisca Xavier de Paula Isidora Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança.
Foi, pois, num contexto favorável à implantação do meu segundo nome, que uma aldeia em peso ajudou a consolidar-me como gente na pele de Gabriela. Gabriela é, sempre foi, a minha pele mais verdadeira, a única por que me reconheço em qualquer parte. O que, bem vistas as coisas, foi ao contrário das nossas rainhas, de quem só o Maria se tornou verdadeiramente relevante para a História.
E por que me lembrei hoje de tudo isto? Porque, se rainhas de Portugal só houve duas, além de tudo a quem bastava individualizar por uma curta ordem entre a primeira e a segunda, as outras Marias da Terra são aos milhares. Razão pela qual sempre necessitaram, ao longo da sua História, de qualquer coisa que as distinguisse melhor, antes do apelido de família. E esse quê de distintivo só pode ser o segundo nome, sendo que eu sou GABRIELA. Ou, então, que me chamem os dois nomes na mesma assentada!
Não é isso que acontece hoje em dia, sobretudo nas empresas, entidades que nos devem mais respeito e a quem o devemos exigir por sermos delas clientes. Que Maria da Terra não se confrontou ainda com um telefonema em que alguém lhe pergunta “Boa tarde, daqui fala de X, estou a falar com a Dona Maria Sá?… Maria Santos, Maria Ataíde…
Esta forma de contactar com as Marias portuguesas não passa, a meu ver, de uma moda irracional e sem atender às características da onomástica nacional. Foi, com certeza, importada de um país onde o ditado “Há Muitas Marias na Terra” não fará qualquer sentido. Aí, provavelmente, as Marias serão apenas Marias, que se reconhecem bem por esse nome, não tendo talvez outro nome atrelado a ele. Além de serem certamente bem menos do que em Portugal, que se deixou invadir por elas ao registar milhares de Marias Qualquer Coisa durante pelo menos um século. Até chegarem as telenovelas brasileiras libertando as raparigas da epidemia a que estariam provavelmente condenadas pela tradição.
É por tudo isto que um dia destes, num dos meus extremismos de espírito, ao ser de novo interpelada por alguém como Maria Sá, dei comigo a corrigir a criatura, obrigando-a a reformular o tratamento para Gabriela Sá. Fui, até, mais longe. Chamei estúpida à moda de amputarem, às mulheres portuguesas, Marias Qualquer Coisa, o nome pelo qual, como é o meu caso, elas se “sentem” gente, o mais importante e o que melhor as caracteriza. Claro que se eu fosse apenas Maria não me queixaria, por razões óbvias…
Haverá Marias Qualquer Coisa que não se importam de ser tratadas como “Simplesmente Maria”, mas eu não gosto. E, então, dizia eu, em mais um dos extremismos a que me referi, questionei-me se não seria caso de a Assembleia da República legislar sobre o assunto obstando a que as Marias Qualquer coisa como eu sejam vítimas de tanta economia de palavras, e às vezes algum prejuízo.
Nota: Inspirado num episódio passado com Maria Leonor Santos, que praticamente perdia o avião no Aeroporto Humberto Delgado em virtude de ter sido chamada ao balcão apenas por MARIA SANTOS.
Há de facto Há muitas Marias na Terra… E Santos também…, digo eu, Maria Gabriela de Sá…
Risos…
Será que me posso incluir no lote das Maria Qualquer Coisa? Talvez seja mais uma Maria Com Complemento, não? Risos
Pois, cumpre os requisitos…..risos