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Jasmin sem flor

Cid P. Valente*

A primeira vez que fui confrontada com a morte, já com consciência de crescida, tinha talvez 26 anos. Uma grande amiga à época, em apenas três dias, deixou de me/nos presentear com o seu sorriso lindo. O maldito do aneurisma fulminante no cérebro venceu. Assim do nada, fiquei sem a sua presença na minha vida, as nossas conversas, as nossas confidências e loucuras próprias da idade, as zangas também, claro. Mas éramos amigas e ninguém devia morrer aos 28 anos, tinha casado há um ano e planeava ter filhos. Sonhos mil que deixou por realizar. Fiquei destroçada, não soube lidar com a situação, reconheço. Afastei-me de tudo o que tinha a ver com ela e com a nossa amizade. Foi a forma que encontrei para seguir em frente.

Entretanto, outras pessoas que conhecia e de que gostava foram morrendo e lá percebi que é mesmo assim. Nada podemos fazer para contrariar a grande e única certeza absoluta da vida. Aprendi a aceitar ou conviver razoavelmente com o tema. Pensava eu. Muitos anos mais tarde, aquando da morte do meu pai, fiquei total e completamente desfeita, senti uma impotência enorme, acompanhada por uma revolta imensa contra o mundo. Asfixiei de desespero, tudo parecia fora da realidade. Lembro-me de passar madrugadas a gritar em silêncio para que os meus filhos não ouvissem. Nem sempre conseguia não chorar à frente deles ou da minha mãe. Queria poder voltar atrás e tê-lo comigo, conversar com ele, rir-me do seu imenso sentido de humor, escutar os seus sábios conselhos e aninhar-me no seu colo. Dar-lhe a mão e juntos vermos os meus filhos crescerem. Foi longo o processo e a minha reabilitação da perda. Tempos depois foi a minha mãe que não resistiu a uma pneumonia e morreu num domingo de Páscoa, sem prévio aviso. Um simples telefonema do hospital a avisar e a minha voz frágil apenas teve força para agradecer a informação. Chorei, claro que chorei, não é todos os dias que perdemos a nossa mãe.

Pela primeira vez na vida senti que era finalmente adulta.  Agora sim, estava por minha conta e risco e não tinha, nem nunca mais teria, uma rede onde pudesse cair caso falhasse nos meus saltos do trapézio que é a vida. Mas suportei melhor o momento, já tinha passado pela morte do meu pai antes e com o desaparecimento de ambos entendi que afinal a morte não é um fim.

Estão comigo todos os dias, nas memórias e nas histórias que conto aos meus filhos e amigos, em pequenos momentos ou palavras que ouço, nos sítios  por onde passo, num olhar desconhecido mas por alguma razão familiar, nos muitos sonhos durante a noite onde estamos sempre juntos e felizes.

Tal como a minha amiga e todas as pessoas de que gostava e morreram, as suas pulsações permanecem dentro de mim, com um sorriso e saudades.

Quem morre verdadeiramente são as pessoas que fizeram parte da nossa vida, que nos foram próximas, privaram à nossa mesa, com quem trocámos sonhos e confidências, rimos e chorámos juntas. Sonhámos e fizemos projetos em que acreditámos e com o tempo nos desiludiram tal como o jasmim que ao chegar a primavera não brota flor. Para que diabos serve o jasmim sem o perfume das suas flores? É apenas mais uma erva. E a desilusão passa quase sempre à indiferença, ao não querer saber porque deixou de ser importante ou fazer sentido continuarmos a pensar nelas. Essas sim, morrem-nos para sempre.
E nem o luto nos ocorre fazer, porque há sempre um jardim com relva verdejante e perfume de jasmim, onde nos podemos sentar tranquilamente e saborear a eternidade de quem vive dentro de nós.

Celebrar também a vida com quem vale realmente a pena! Como canta Elis Regina “… os amigos do peito e nada mais…”

* A Cid P. Valente é uma verdadeira mulher do leme. Mãe a tempo inteiro, antiga programadora cultural, quer dar uma ajuda para mudar o mundo (para melhor!). E ainda arranja tempo para nos escrever coisas fantásticas.

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